segunda-feira, 17 de março de 2008

Fica fácil compreender como no contexto das sociedades absolutistas do Oriente, nas quais a política propriamente dita - decorrente da participação social ou da cidadânia - inexistia, a divininação do homem e do humano não podia chegar a seu termo, deslocando para fora do panteão as representações animalescas e os símbolos fenomenológicos.

Regidas pela força bruta de monarcas que se apresentavam a si mesmo como filhos das divindades, é natural que tais sociedades encarassem tais divindades sob o ponto de vista do poder e da força, pode e força representados com muito mais propriedade por um Leão, por um crocodilo ou por um touro do que por um homem. No contexto de tais sociedades convinha que apenas e tão somente o rei, enquanto filho do deus, fosse divinizado, somente numa contexto no qual o rei fosse suprimido e substituido pela assembléia do povo, as divindades poderiam ser completamente humanizadas, de modo que o mundo celestial se refletisse de alguma maneira no mundo sublunar...

A princípio os gregos também eram governados por monarcas todo poderosos e prestavam culto a animais ou a deuses meio homens, meio animais. Educados pelos minóicos os antigos gregos não podiam ter permanecido a margem do culto do touro, quase que onipresente em todo circuito do mediterraneo, posteriormente o touro converte-se num minotauro, até que o próprio minotauro - representante dos deuses antigos - foi morto por um simples mortal: Teseu filho de Egeu, o qual mereceu por isso mesmo ser considerado um herói ou semi-deus.

Todavia, tal e qual aos reis sucederam os oligarcas, a estes os tirânos, e a estes por fim a assembléia do povo, tendência que se tornou preponderante já nos tempos de Sólon, também as formas religiosas deviam alterar-se, passando do zoomorfismo, ao semi zoomorfismo, deste ao semi antropomorfismo, até chegar ao antropomorfismo absoluto e banir do Olimpo todas as representações animalescas. Assim a religião grega não deixou de acompanhar a evolução das estruturas sociais e políticas.

A principio os atenienses devem ter adorado a coruja como animal totêmico e representação divina, a qual por sua vez foi suplantada pela figura duma mulher com cabeça de coruja, posteriormente a coruja passou a companhar a deusa Atena, ja despida de todo e qualquer carater animalesco, até que por fim a coruja saiu completamente de cena dando lugar a uma mulher sózinha ou melhor deusa humanizada...

Certamente que essa evolução não ocorreu linearmente e que nos campo, por exemplo as representações animalescas devem ter coexistido por um bom tempo com as representações humanas, uma ao lado da outra. Nas cidades porém, especialmente nos portos, nos quais as relações pessoais e as estruturas sociais são bem mais dinâmicas, o aspecto animal foi rapidamente superado pelo aspecto puramente humano...

De modo que, num determinado momento - períodos arcaíco, clássico e helenístico - ao menos dos grandes centros comerciais da Helade, todo o panteão religioso se viu expurgado de todo e qualquer conteúdo zoomórfico e por assim dizer humanizado, antropomorfizado...

Momento grandioso este, na história das crenças e idéias, no qual a divindade abandonando todo e qualquer aspecto animalesco e brutal, referente ao poder e a força, assumiu um cárater puramente humano, referente a racionalidade e a ética. Pois certamente que a racionalidade e a ética, num contexto religioso, só podiam impor-se no momento em que as representações daquele que raciocina e escolhe, substituissem as representações daqueles que agem por instinto em função dos apetites.

Por isso no mesmo instante em que o grego pôde contemplar a sí mesmo ou sua natureza divinizada sobre o altar a divindade perdeu automaticamente o seu aspecto feroz, para ser também ela guiada por imperativos humanos e humanitários como a justiça, a bondade, a misericórdia, a generosidade, etc

Enquanto predominaram as formas animalescas do divino representando um padrão de força e ferocidade, predominaram em larga escala os sacrifícios humanos, ou seja, homens eram imolados com o objetivo de aplacar as forças naturais descontroladas... O homem compreendia tais acidentes como castigos enviados pelas divindades, certamente porque ele havia se acomodado e deixado de servi-las como elas desejavam ser servidas: com vítimas e efusões de sangue... pois segundo afirmavam os sacerdotes dessas divindades implacáveis, os deuses haviam criado os homens para serem servidos, adorados e alimentados por eles, mormente com carne e sangue humanos.

Até mesmo no pacífico Egito os Faraós não deixavam de imolar, exporadicamente, alguns prisioneiros a leoa Sekmeth, esposa de Phta, o grande Senhor de Mênfis. Na Suméria e na China dezenas de servidores acompanhavam o rei divino a sua morada eterna... Por esse tempo, todavia, boa parte das divindades já havia assumido alguma característica humana.

Seja como for a representação humana dos deuses parece ser incompativel com a imolação se seres humanos, nesse momento, as oferendas humanas tiveram de ser substituidas por oferendas animais, Observe-se que o homem de oferenda transforma-se em deus e que os animais, outrora divinizados tornam-se oferendas.

No extremo Oriente dois reformadores religiosos, ambos agnóstas, Buda e Mahavira, deram mais um passo a frente a acabaram abolindo até mesmo o sacrifício de animais. Posteriormente ambos acabaram por ser divinizados por seus adeptos os quais substituiram por suas representações - representações humanas - os deuses animalescos da antiguidade como Ganesha e Vaara.

Cumpre notar ainda que os gregos além de humanizar suas divindades fizeram-nas representantes de um ideal de graça e de beleza. De modo que Apolo tornou-se como que o símbolo imortal da beleza masculina enquanto que Afrodite converteu-se em símbolo da beleza feminina. Já não se tratava de colocar o homem real, com seus defeitos e limitações físicas, sobre o altar, mas de se divinizar a própria beleza humana na harmônia das linhas e traços.

Pode se dizer que os gregos fizeram do estético ou do belo o centro de seu culto em oposição aos ídolos monstruosos cultuados pelos povos antigos.

E do estético passou a evolução ao terreno do ético ou da moral.

Efetivamente os deuses apresentados por Homero na Íliada em nada se distinguem dos mortais exceto pela imortalidade e pela beleza, imortalidade e beleza que adquirem consumindo o néctar e a ambrósia. No mais suas ações e operações refletem sempre os vícios e paixões humanas: Zeus teve por amantes a Leda, Semele, Maia, Europa, Alcmena, etc Hera fazia as vezes de esposa rancorosa e ciumenta, Apolo era dado ao roubo e a mentira, etc

De todas essas lendas valeram-se os Cristãos: Aristides, Quadrato, Milciades, Justino, Taciano, Hérmias, Agostinho, etc com o intuíto de atacarem a religião dos antigos gregos. Já Platão havia empunhado seu látego contra Homero, afirmando que ultrajado a santidade dos deuses...

O fato é que o povo em sua maioria, especialmente a gente dos campos, permanecera insensivel as abjurgatórias de Platão e de seus pares. Quinhentos anos após o lançamento da "República" as massas ainda concebiam os deuses nos termos homéricos ou seja enquanto multiplos e imorais, de modo que a crítica dos apologistas Cristãos era absolutamente justa.

Nas cidades porém formara-se já no século anterior a Platão um núcleo de intelectuais que concebiam as divindades homéricas como emanações ou atributos de Zeus, o Deus único e monarca supremo do universo. O próprio cárater de Zeus distinguia-se perfeitamente dos deuses homéricos pela santidade, pelo amor a justiça, pela misericórdia, etc

Eis o testemunho eloquente de Ésquilo:

"O pensamento de Zeus é díficil abarca-lo,
brilha em todos os lugares
mesmo na treva da noite e no coração dos homens angustiados...
Na mente de Zeus estão todos os seres,
pela profundeza da realidade
Se estendem as sendas dos seus desiginios
Que não somos capazes de compreender...
Ele não emprega de violência em suas empreitadas
Para Deus nada é díficil de realizar,
Serenamente executa seus ditames
Assentado sobre os sólio magestoso planeja
E assim se cumpre." in Aischylos, p 58

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