segunda-feira, 17 de março de 2008

Paralelamente os conceitos pertinentes a religião popular também iam passando por uma depuração, lenta, porém real.

Se tomar-mos como exemplo o aspecto da representatividade dos seres divinos no contexto da religião pagã, a evidência quanto a esse processo é por assim dizer a toda prova.

Segundo cremos os primeiros deuses cultuados por nossos antepassados estavam relacionados com as forças ou fenômenos naturais fossem de natureza cósmica ou telúrica, isto é concernentes aos astros ou a terra.

Nesse contexto o mais provável é que prestassem culto aos próprios elementos enquanto tais adorando astros, pedras, fontes, etc sem necessidade de representa-los uma vez que estavam sempre presentes em todo tempo e lugar.

Os arqueólogos tendem a afirmar que as diversas estátuetas femininas, representando mulheres obesas ou grávidas e cognominadas Vênus, estão relacionadas com o culto duma espécie de deusa mãe - relacionada com a terra e talvez com a germinação das sementes - mas, tais afirmações são puramente hipotéticas se levamos em consideração a inexistência de fontes escritas. Encaradas como objetos de fetiche - algo semelhante ao nosso Vodú - tendo em vista o sucesso da procriação e do parto, nada nos obriga a encara-las como representações de divindades...

Embora não possamos averiguar com absoluta certeza por falta de provas concludentes estamos persuadidos de que as forças naturais divinizadas pelo homem durante o neolítico, foram quase que imediatamente extendidas aos animais e vegetais. Se levarmos em consideração que a temática dominante nas pinturas parietais é a fauna e que tais pinturas foram confeccionadas com o objetivo fetichista de se garantir uma caça abundante, fica fácil de se compreender como o homem primitivo associou ao culto das fenômenos naturais que o aterrorizavam, o culto dos "espíritos" animalescos que desejava apaziguar ou até mesmo, conquistar a afeição, sempre com o intuíto de garantir o sucesso em suas caçadas.

Nas civilizações agricolas e sedentárias, devido a necessidade de se aplacar os elementos e preservar as culturas predominou decerto o culto as divindades fenomenais, enquanto que nas civilizações semi sedentárias dependentes da caça floresceu o culto dos espíritos anímalescos, culto que acabou dando origem ao totemismo.

A ideologia totemista postulava uma aliança entre espírito de um determinado animal - o urso, o leão, o touro, etc - e um determinado grupo humano ou clã. O animal tanto podia ser aquele de que o grupo mais dependia enquanto fonte de suprimentos, quanto um animal que lhe prestasse auxilio em suas caçadas, como o cão por exemplo. Em diversos casos concluia-se por uma perfeita identidade entre o espírito daquele animal e cada um dos membros do grupo, segundo criam os caracteres e poderes do espírito em questão eram - em certas circunstâncias - assimilados por seus adoradores.

Mais tarde, com o desenvolvimento da agricultura a caça ao animal símbolo do grupo acabou sendo vedada e o consumo de sua carne considerada um tabú ou maldição. No Egito, como já dissemos, a exaltação dos espíritos totêmicos de cada nômo acabou dando origem a uma espécie de culto "sui generis" a zoolatria.

Seja como for parece certo que os primeiros deuses a ser representados foram representados sob a forma de animais. Parece que dentre esses animais predominou a figura do touro, representado como divino primeiramente nas pinturas de Çatal Huyuk ( + - 7000 a C), e posteriormente em Harappa, em Creta, no Egito, na Península Ibérica, etc Parece que devido a sua constituição robusta o touro o touro como que representava todos os espíritos animalescos...

Parece que no alvorecer do período histórico um certo intercâmbio ideologico entre os povos acabou por associar o fenomenismo naturalista com o totemismo de modo que a cada divindade-fenômeno passou a corresponder uma divindade animal e vice versa. Esse tipo de associação era geralmente representado por um animal acima do qual ou sobre o qual era gravado um símbolo fenomenal cósmico ou telúrico...

O Hórus egipcio por exemplo, era representado por um falcão cuja fronte era nimbada pelo disco solar.

Parece que foi na suméria que o elemento humano foi introduzido pela primeira vez nas representações divinas.

Alguns arqueologos sustentam que certas esculturas humanas encontradas nas tumbas pré dinásticas do Egito, são representações de divindades, parece, entretanto que se tratam de figuras de adoradores, quicá tomadas a arte religiosa sumeriana. Haja visto que, nas paletas pertencentes a época tinita - inclusive na de Menés/Narmer - a divindade principal: Hórus, continua sendo representada exclusivamente pelo falcão e pelo disco solar, sem quaisquer traços humanos.

É na Suméria que nos deparamos pela primeira vez - cerca de 3000 a C - com uma representação semi humana do divino. Trata-se daquele selo no qual Enki, o deus das águas é representado como uma espécie de sereia ou seja metade homem, metade peixe. Segundo Berósio os sumérios haviam sido instruidos por um ente metade homem metade peixe chamado Eoanes...

Pouco depois, cerca de 2.500 a C já nos deparamos com um Enki totalmente humano, exceto por suas mãos donde saem fluxos de água, e pelo seu totem/símbolo o peixe.

Enlil, muito provavelmente representado como um bode nos tempos pré históricos, passa a ser representado por uma espécie de sátiro, ou seja, por um homem com orelhas, rabo e pés de bode.

Inana, quiça representada por uma ave nos tempos pré-históricos passa a ser representada por uma mulher com quatro asas.

Aos poucos todos os membros do panteão sumeriano vão assumindo formas cada vez mais humanas, até que se em sua maioria se convertem em homens ou mulheres acompanhados por animais totêmicos e símbolos fenomenologicos. Nos períodos Babilônico e assírio, tais transformações se acentuam ainda mais de modo que os próprios símbolos acabam desaparecendo e com eles os derradeiros vestígios de naturalismo e totemismo. Surpreendentemente algumas representações animalescas permanecer irredutiveis a quaisquer transformações tais como a da divindade assíria Nesroc, representada por um homem com cabeça de águia...

Da suméria tais transformações passaram ao Egito de modo que os deuses também passram a ser representados com o corpo humano e cabeça de animal. Posteriormente algumas divindades como Osíris, Isis, Néftis e Amon antropomorfizaram-se por completo, mantendo junto a si porém, o animal totêmico. A maior parte das divindades porém, como Toth, Anubis, Sekmeth, Hator, etc, não acompanhou essa transformação, que sendo assim permaneceu marginal.

Nem no Egito, nem na Suméria a religião foi capaz de romper definitivamente com o zoomorfismo. Com maior ou menor proporção o zoomorfismo sempre permaneceu presente no imaginário divino dos povos orientais, seus sacerdotes iniciaram a revolução antropomórfica, mas não foram capazes de consuma-la, certamente que o antropomorfismo só poderia triunfar por completo numa estrutura social tanto mais dinâmica quanto perticipativa: a pólis grega.

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