domingo, 9 de março de 2008

Posto esta que, para nós o politeismo e a idolatria são peculiares as civilizações sedentárias e agricolas localizadas, a princípio, nos grandes vales aluvionais.

Certamente que essas idéias religiosas acabaram por ultrapassar os estreitos límites das regiões em que surgiram e vieram a predominar, impondo-se gradativamente as culturas periféricas das regiões mais afastadas.

Isto na medida em que as circunstâncias lho permitiam.

Naquelas regiões nas quais os grupos humanos viam-se obrigados a deslocar-se continuamente, como estepes e desertos, a religiosidade citadina dos templos, fetiches e corporações clericais, encontrou obstáculos intransponiveis e sua implantação foi bastante superficial.

De modo nos povos dedicados ao pastoreio o sacerdócio, ao invés de passar ao domínio público, permaneceu nas mãos dos chefes dos clãs ou patriarcas.

O culto, muito mais simples e primitivo, consistia na imolação de rezes ao ar livre, junto aos bétilos, fontes e árvores sagradas.

A par dos gênios ou espíritos subordinados que habitavam essas paragens, os povos do deserto distinguiam perfeitamente um artífice celestial, eterno, incriado e infinito.

Foi nos desertos que a idéia pura e simples do absoluto ou do artífice universal conservou-se, mais ou menos pura e daí saiu para conquistar o mundo.

Judeus, muçulmanos e cristãos, tem enfatisado excessivamente o cárater sobrenatural e transcendente da revelação obtida por seu patriarca comum Abraão.

Para mim se o termo Abraão significa um individuo ou uma coletividade tribal é de todo irrelevante. Importa-me antes de tudo as transformações porque teria passado a consciência desse individuo ou dessa coletividade, minha crítica não esta voltada para Abraão - o que foi ou quem foi Abraão? - mas para a idéia de Abraão.

Segundo a tradição corrente das formas monoteistas, Deus é que teria se manifestado a Abraão. Tratar-se-ia duma revelação sobrenatural, externa, transcendente e divina. O Deus único teria aparecido a Abraão e se comunicado a ele.

O Talmud, todavia, parece incorporar uma outra versão, quiçá mais antiga, embora não possamos averigua-lo.

Segundo uma se suas narrativas Abraão teria o costume de contemplar os céus e de meditar sobre eles enquanto pastoreava seus rebanhos no deserto. Certa noite nosso homem teria se perguntado qual seria a origem do universo.

Segundo as crenças correntes na cidade de Ur - na qual seus antepassados saidos do deserto haviam se radicado há algum tempo - as supremas divindades seriam os astros e as estrelas do firmamento: Sin, Shamash, Anu, etc

Abraão porém, teria concluido que o sol, a lua e as estrelas não passam em última analise de criaturas carecendo, também elas dum artífice divino... e dos deuses materiais e mortos teria sacado a existência de um Deus espiritual ou dum Espírito universal...

Se para Abraão esses Espírito era único, se era o mais poderoso deles ou se era o único digno de adoração e culto é o que não podemos saber, mas, ao que tudo indica o patriarca do monoteismo foi na verdade o patriarca do espiritualismo e da transcendência divina. Pois enfatizou mais a espiritualidade que a unicidade desse ser recém percebido por sua consciência.

Ao dizer 'percebido por sua consciência' estamos querendo dizer que a revelação Abraâmica foi imanente a consciência de Abraão e não transcendente. Ou seja, foi algo que partiu de dentro de Abraão e não algo que veio de fora. Não foi Deus que se revelou a Abraão, mas Abraão que iniciou a redescoberta de Deus, lançando as bases do espiritualismo teista e do monoteismo (ao menos em potência).

Talvez alguém se pergunte se isso não seria diminuir a figura do patriarca semita ou do grupo que ele representa?

Tenho para comigo que ao invés de rebaixar, estamos é elevando a figura de Abraão. Sim, pois ao invés de atribuir uma idéia tão simples quanto a espiritualidade divina a uma comunicação sobrenatural, significando com isso sua incapacidade ou imbecilidade, estamos, muito pelo contrário vindicando a criatividade ou a originalidade desse grande homem... e ao vindicar a criatividade e a orgininalidade de Abraão estamos de alguma maneira, vindicando a dignidade ímpar do próprio homem, capaz de conceber naturalmente o seu Criador.

Mas isso não implicaria em diminuir Deus?

Certamente amesquinhamos a perfeição divina na mesma proporção em que multiplicamos suas ações ou intervenções no universo...

Pois um dos caracteres da perfeição é agir sempre por causa segundas ou atuar por meio de leis constantes, universais e imutaveis.

Comportando o homem certa similaridade com seu artífice, enquanto ser racional e livre, afirmar sua dignidade e sua capacidade jamais será ultrajar a Deus, mas glorifica-lo. Pois todo artífice é glorificado em suas obras...

Afirmar que a imagem e a semelhança de Deus teria sido incapaz de elevar-se por si mesma a idéia de Deus se me apresenta como a mais abominavel das monstruosidades concebidas pelo cérebro humano.

Postular, como fazem alguns, a incapacidade de Abraão e da humanidade por ele representada, é postular em última analise a incapacidade do próprio Deus criando um ser incapaz de concebe-lo...

Porque Deus sendo magnânimo e generoso haveria de fazer um ser para ser auxiliado se poderia ter feito um ser competente?

Diante de quem Deus desejou manifestar seu cárater de ajudador?

Acaso ele não conheçe muito bem a si mesmo?

É Deus inseguro? Precisa auto-afirmar-se?

Acaso era necessário que ele cria-se os homens em estado de fraqueza e debilidade para ser credor da gratidão humana?

Certamente Deus não tem necessidade de nada...

Os homens que multiplicando suas intervenções ao infinito, atentam contra a perfeição de seu ser.

E este é o caminho do antropomorfismo, a suma corrupção da idéia de Deus.

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